Entrevista com Marcelo Ikeda

A vítima de hoje é Marcelo Ikeda, que trabalhou na Agência Nacional do Cinema (ANCINE) entre 2002 e 2010, ocupando diversas funções; Ministrou cursos e palestras sobre Leis de Incentivo e Economia do Audiovisual em diversos cursos, como IETV e FGV/RJ (Film & TV Business). Foi diretor e roteirista de diversos curtas; Participou de diversos festivais nacionais e internacionais; É crítico de cinema e escreveu para variados veículos como ViaPolítica, Claquete, CurtaoCurta, Revista Etcetera além de manter o blog Cinecasulofilia (www.cinecasulofilia.blogspot.com) desde 2004.

Confira abaixo nossa entrevista.

Boa sessão:


1) Quando nasceu sua paixão pelo cinema? Existiu um momento que olhou para trás e pensou: "- Puxa, sou um cinéfilo!!"?

M.I.: Começou antes de eu nascer....(risos). Meus pais se conheceram numa sala de cinema, ao verem uma sessão de Planeta dos Macacos. Um tio meu, quando eu tinha sete anos, veio visitar a família, e ele via filmes nada convencionais. Eu via esses filmes com ele, e quando eu perguntava por que esses filmes eram considerados tão bons, ele me respondia: “você tem que descobrir por si mesmo, cinema não se explica!”. Assim, procurei ver mais filmes e ler mais sobre cinema. Continuo tentando descobrir até hoje!

Até que com uns treze anos, vi um filme que mudou a minha vida: “Não Amarás”, do polonês Kieslowski. Vi na televisão da minha casa, alugado em VHS na locadora da esquina. Foi como a anunciação. Dali em diante percebi que o cinema nunca mais deixaria de ser parte da minha vida. De lá para cá, já vi esse filme umas vinte vezes.

2) Coleciona filmes, CDs ou algo relacionado à 7ª arte ? Quem curte cinema, costuma ter suas relíquias em casa...

M.I.: Tenho muitos filmes, comecei com o VHS, depois DVDs, agora tenho toda a minha filmoteca em dois HDs, duas caixinhas que quase cabem num bolso. Devo ter mais de 2000 filmes, fora os livros sobre cinema. Mas não me considero um “colecionador”. Sou apenas um arquivista: mantenho um acervo pessoal sobre o cinema, para consultas, pesquisas e aulas. Não gosto de citar números, pois a paixão pelo cinema não se mede. Não acho que alguém goste mais ou entenda mais de cinema pelo número de filmes que viu ou que assiste.

3) Além de ser fonte de renda, o que te motiva a estar neste meio cinematográfico? 

M.I.: O cinema faz parte da minha vida; não consigo viver sem o cinema. Não é somente uma “fonte de renda”, é algo como o oxigênio, que me faz vivo. Assim, não penso em como é “estar no meio cinematográfico”, isso foi algo que aconteceu naturalmente dado o meu desejo de assistir a filmes e compartilhar com as pessoas esse meu desejo, de compartilhar tudo aquilo que descobri a partir do cinema. Todas as coisas que fiz desde então surgiram desse desejo ingênuo, que é o prazer de ver um filme. A busca pelo reconhecimento é uma grande armadilha: não me preocupo com isso, preocupo-me apenas um fazer o que acho correto. 

4) Qual sua experiência dentro do universo cinematográfico que mais te marcou? 

M.I.: Nunca pensei sobre isso. Foram tantos eventos, tantas descobertas. Sou muito grato ao cinema por me possibilitar conhecer lugares e pessoas que nunca imaginei conhecer. O cinema possibilita encontros, e esses encontros são grandes experiências que me marcaram e me transformaram profundamente. Uma delas foi exibir um de meus curtas num hospital psiquiátrico (o Pinel, no Rio de Janeiro), e conversar sobre o curta com os pacientes do hospital, que foi uma experiência riquíssima. Outra experiência que saí profundamente transformado foi ver numa sala de cinema o filme SATANTANGO, de Bela Tarr, com mais de oito horas ininterruptas de duração. Quando saí do cinema, o mundo parecia outro. Sou ainda apaixonado por ver filmes em uma sala de cinema, que ainda considero o local mais mágico para ver um filme.

M.V.: Até os filmes ruins, quando assistidos no cinema,  se apresentam mais interessantes.

5) Existe uma lista de filmes que marcaram sua vida?

M.I.: A cada semana, essa lista se modifica, então vou fazer listas e sub-listas (risos):

A primeira é de filmes que são meus maiores pilares, são as vigas-mestras de como eu percebo o cinema:

Walden, de Jonas Mekas

Jeanne Dielman, de Chantal Akerman

Cedo demais, tarde demais, de Jean-Marie Straub e Danielle Huillet

Gertrud, de Carl Th. Dreyer

Mouchette, de Robert Bresson

Era uma vez em Tóquio, de Yasujiro Ozu

Ladrões de Bicicletas, de Vittorio de Sica

Os diretores que mais me marcaram são Jonas Mekas, Chantal Akerman e Jean-Marie Straub/Danielle Huillet. Em seguida, Yasujiro Ozu, Robert Bresson e Carl Dreyer. Outros, como Michelangelo Antonioni e Ozualdo Candeias também me marcaram profundamente. 

Outros filmes em grande estima na minha memória pessoal:

A Cor da Romã, de Sergei Paradjanov

Aopção, de Ozualdo Candeias

O Sol do Marmeleiro, de Victor Erice

Café Lumière, de Hou Hsiao Hsien

Memórias de um estrangulador de loiras, de Julio Bressane

Nostalgia, de Andrei Tarkowski

La Vallée Close, de Jean-Claude Rousseau

One week, de Buster Keaton (curta)

Corrida sem fim, de Monte Hellman

Vinte cigarros, de James Benning

A aventura, de Michelangelo Antonioni

A doce vida, de Federico Fellini

Terra, de Alexander Dovzhenko

Persona, de Ingmar Bergman

A Mulher de Areia, Hiroshi Teshigahara

No decurso do tempo, de Wim Wenders

Há filmes que nem sei se tão bons, mas que me marcaram tão profundamente, de modo que minha vida está ligada a esses filmes:

Não Amarás, de Krzsyztof Kieslowski

Estética da Solidão, dos Irmãos Pretti

Silver city, de Wim Wenders (curta)

Eu transo, ela transa, de Pedro Camargo

A loja da esquina, de Ernst Lubitsch

O anjo azul, de Joseph Von Sternberg

A última gargalhada, de F.W. Murnau

O último americano virgem, de Boaz Davidson 

Le Trou / A um passo da liberdade, de Jacques Becker

Kes, de Ken Loach

Roleta chinesa, de Reiner Werner Fassbinder

Rocco: animal trainer, de Rocco Siffredi

Há diretores que eu gostaria de citar mais de um filme, como:

Crônica de Anna Magdalena Bach, de Jean-Marie Straub

As I was moving ahead...., de Jonas Mekas

A dupla vida de Veronique, de K. Kieslowski

News from home, de Chantal Akerman

Gosto muito do cinema contemporâneo, citaria alguns que me marcaram profundamente:

Os mortos, de Lisandro Alonso

Rosetta, dos Irmãos Dardenne

Cães errantes, de Tisai Ming Liang

Japón, de Carlos Reygadas

O que se move, de Caetano Gotardo

A garota de lugar nenhum, de Jean-Claude Brisseau

(o primeiro episódio de) Cinco, de Abbas Kiarostami

Plataforma, de Jia Zhang Ke

Eureka, de Shinji Aoyama

Esse amor que nos consome, de Allan Ribeiro

M.V.: Interessantes suas listas. Elas fogem totalmente do senso comum, de nomear filmes como Poderoso Chefão, 2001, entre outros...

6)  Há algum outro projeto em vista relacionado ao cinema? 

M.I.: Tenho vários projetos, de mostras de cinema, de livros, de filmes. Mas não gosto de falar sobre os projetos que farei, pois não sei se os farei e como os farei. Provavelmente não conseguirei fazer 10% daquilo que gostaria de fazer e daquilo que sonho em fazer, mas isso não me desanima ou me desmotiva, pois o pouco que venho conseguindo fazer me orgulha, pois me parece algo digno. Algo que contribui não apenas para mim, mas que planta uma semente, mesmo que frágil, ou que eu não saiba muito bem para onde vai.

7) Para finalizar, deixe uma lição do tempo que se dedicou à arte.

M.I.: Não gosto muito dessa coisa de “deixar uma lição”. Não quero servir de exemplo para ninguém. Minha vida foi a forma como encontrei para fazê-la. O que venho procurando fazer, já há alguns anos, é exercer uma militância a favor da arte, da cultura, especificamente do cinema, como forma de estar no mundo. Muitas vezes vivemos de forma tão apressada e corrida que mal temos tempo de contemplar o mundo à nossa volta, de refletir sobre nossa existência, de ouvir o canto dos pássaros, o som do vento balançando a copa das árvores.

O papel do cinema é nos fazer perceber isso. Acredito que esse é o papel da arte, de nos fazer ver o mundo como uma experiência sensível, de ampliar os caminhos de nossa sensibilidade. De nos fazer ter outras experiências. E de nos aceitar como verdadeiramente somos. É tão difícil que nós nos aceitemos como somos. E também de aceitar o outro como ele é. O desafio é sermos nós mesmos, e não como querem (nossa família, nossos chefes, etc.) que nós sejamos. Para isso, é importante ter acesso à diversidade. Termos contato com outras culturas, com outros modos de ser, percebermos que há pessoas que são e pensam diferentes de nós, e que elas não são melhores ou piores por causa disso. 

Respeitar e conviver com a diferença. Ouvir. Respirar. Entender que não precisamos torcer pelo mesmo time de futebol, ouvir as mesmas músicas, ver os mesmos filmes, ter a mesma orientação sexual, ter a mesma religião. Que podemos ter o direito de escolha. Que podemos viver e pensar de forma própria, que não precisamos ser meros zumbis. Que possamos entender que o mundo é um processo histórico, uma construção de olhares dos “vencedores” que esmagam os “vencidos”. Que possamos sair da nossa zona de conforto, e nos abrir para outras experiências. E que entendamos que a liberdade não é viver da forma como queremos, mas que é também respeitar os nossos limites e os limites do outro. Ser como somos sem ferir o outro.

Acho (talvez romanticamente) que o cinema pode contribuir nesse processo de luta, nesse processo de engajamento do ser humano por uma outra existência. Essa é a minha utopia!

M.V.: Obrigado amigo. A gente se vê nos festivais. 


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