Entrevista com Matheus Nachtergaele.

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Através das 7 perguntas capitais eu conheci o mundo, literalmente. Consegui conversar com pessoas que eu jamais imaginaria que seria possível. Foi um projeto incrível. São apenas 7 perguntas, mas que fornecem um pequeno mosaico da carreira e paixão do entrevistado (a) pelo cinema.

E hoje, com vocês, a ator Matheus Nachtergaele, de Cidade de Deus e O auto da compadecida
Entrevista enviada por áudio e transcrita por Leandra Marinho.


1) É comum lembrarmos com carinho do início da nossa relação com o cinema. Os filmes ruins que nos marcaram, os cinemas frequentados (que hoje, provavelmente, estão fechados), as extintas locadoras de VHS que faziam parte do nosso cotidiano. Você é um apaixonado por cinema? Conte-nos um pouco de como é sua relação com a 7ª arte.

M.N.: A primeira coisa ao qual me lembro com clareza é ter visto na televisão que funcionava à bateria no sítio de Atibaia, onde moravam meus avós belgas, ainda na minha infância uma crucificação do Cristo, chorei muito! E minha avó então teve que me explicar um pouco o que tinha acontecido. Essa é minha primeira lembrança, mas não sei que filme foi, e eu vi na televisão.

Depois me lembro de estar numa sala de cinema, ainda muito menino, assisti “Marcelino Pão e Vinho”. Minha tia Ana nos levou não me lembro da história, mas me lembro do menino que foi picado por uma cobra e morreu. Depois vieram as imagens que eu assisti na casa da família da minha mãe Maria Cecília que morreu quando eu era um bebê. Não conheci minha mãe, ou pelo menos não me lembro dela racionalmente. Mas nesta festa na casa da família dela, foi projetado na parede um filme, um super 8 caseiro, que retratava uma festa e entre as crianças que estava nesta festa, tinha uma criança que me chamou especialmente a atenção. Moreninha com vestido branco destes de renda, deste de menina, era minha mãe, minha mãe sorrindo, se mexendo, chegava próximo à câmera acenava, sorria; minha tia Margarida chegou perto de mim e disse: “ Essa pretinha aí é sua mãe”. Eu me emocionei muito e talvez tenha então nesse momento entendido que tipo de milagre o cinema é capaz de fazer.


À partir daí vem o amor pela arte, a formação bonita que a televisão aberta nos dava às pessoas de minha geração, exibindo geralmente bem tarde a noite, grandes filmes, grandes obras de artes. Assisti muitas coisas bonitas: Bergman, Orson Welles, Mazzaropi, muita coisa bonita! Depois já na faculdade de Artes Plásticas na FAAP em São Paulo, passei a frequentar cineclubes e cinemas, escolhendo os filmes que eu queria ver já com a minha turma de artistas. E depois disto é o envolvimento total em sendo ator e amando cinema.

Veja que as primeiras lembranças de cinema estão ligadas à intimidade familiar, ao sentimento religioso e a piedade.

Eu não posso deixar de dizer que o desenho animado sempre me impressionou muito. Quando eu fiz 15 anos, meu pai me perguntou o que eu queria como presente de aniversário e eu pedi para ele um curso de animação de Sergio Tastaldi, ele estava no Museu da Imagem e do Som em São Paulo. Fiz o curso muito antes de pensar em ser ator. Ou seja, a animação me acompanha desde cedo. Eu continuo sendo um “assistidor” fanático de animações. Não só os clássicos estrangeiros, mas filmes experimentais. Adoro animação brasileira e quando me chamam para dar voz a algum personagem de um filme brasileiro de animação eu fico muito, muito feliz! Eu sou um pouco menino. Eu gosto de desenho de bicho e de flor.


2) Muitos adoram fazer listas de filmes preferidos. Outros julgam que é uma lista fluida. Para não te fazer enumerar vários filmes, nos diga  qual o filme mais importante da sua vida. E  há uma razão para a produção que citar ser destacada?

M.N.: Aaahhhh. As listas ... É difícil não cair na tentação de eleger os filmes mais queridos. Mas meu gosto é tão eclético desde “Dodeskaden” do Kurosawa à “Noviça Rebelde” de Robert Wise. Desde “Bambi” da Disney até “La luna” de Bertolucci.

Para me restringir as coisas que eu tenho devorado na quarentena, isso pode ser interessante, tenho devorado a obra do Maurice Pialat e também estou completamente apaixonado, por um cineasta americano do cinema independente, do cinema mais arriscado, John Cassavetes. Então eu consegui aqui uma caixa com alguns filmes do Pialat e outra caixa com Cassavetes e é o que eu tenho visto, quase como um estudo despretensioso, mas profundo. Aproveitando o silêncio da quarentena.


3) Quem trabalha com cinema no nosso país, certamente o faz por amor.  Mas muitas vezes não imagina o impacto que algum filme ou personagem tem na vida das pessoas. Eu acompanho sua carreira desde sempre, mas o revejo sempre em Cidade de Deus, que é um dos filmes da minha vida e também é considerado um dos grandes filmes nacionais da história. 
Além disto, a dupla Chicó e João Grilo é uma das mais felizes parcerias do cinema, daquelas que mereciam séries e mais séries. O que estes papéis representaram na sua carreira? E como foi o processo de preparação para o personagem Cenoura e João Grilo?

M.N.: O Artesanato do ator é claro que obedece a algumas regras e cada um tem seu método. Mas também cada personagem, cada diretor, cada meio de expressão do teatro, cinema, TV, série, pede um tipo de aproximação. Cada veículo onde o ator atua, vai requerer um procedimento da construção do personagem. Confesso a você que eu não tenho um método claro, apesar de ser um homem formado pela escola de Arte Dramática e acredito muito na formação dos atores, despreza-se muito esse produto dessa relação, na pressa do mundo atual. Acho um grande erro. Acho bonito o ator ser formado, desde a base com bastante rigor. Eu fiquei um ano no Centro de Pesquisas Teatrais do Antunes Filho... e depois dois anos na escola de Arte Dramática da USP em São Paulo, antes de começar a “minha vida” profissional no Teatro de Vertigem.


Não me formei, não tenho um diploma, mas estudei bastante tanto no Antunes quanto na IAB (Instituto Artístico Brasileiro). Os métodos principais, Stanislavski e outros, Brodowski, estudei muito os textos teórico de Cocteau...eu sou um leitor de Antonin Artaud. Posso te dizer que eu sou o resultado dessas experiências de formação, misturadas a um desejo muito profundo de estar absolutamente identificado com os personagens. O personagem me interessa muito como plataforma para algo que eu queira dizer. Eu sempre apesar de adorar a caracterização profunda, procuro estar totalmente identificado com o personagem. Basicamente todos eles são “eu” se estivesse naquela situação.

Nesse sentido da construção, João Grilo e o Sandro Cenoura podem ser considerados parecidos. Mas é diferente por causa do processo. Explico: o Guel (Arraes) é um diretor muito aplicado, prepara muito o trabalho antes de filmar, adora escrever, fazer storyboards do que ele vai filmar e ele oferece para seus atores, além de muitas horas de ensaio, um extenso material bibliográfico e iconográfico para construção dos personagens. Então eu construí João Grilo estudando os arquétipos desse personagem, de Lazarillo de Tormes , passando pelos Arlequins até os Cordéis que retratavam João Grilo antes de Ariano Suassuna, registrá-lo no Auto da Compadecida. Ensaiamos muitas horas (eu e  Selton) e depois em Cabaceiras, onde nós filmamos na Paraíba.


Fiquei muito próximo à população, às pessoas, para pegar o sotaque de um jeito profundo. Também li Ariano Suassuna, enfim, fiz o dever de casa. E o filme “Cidade de Deus” era totalmente diferente, o Fernando Meirelles em certo momento me convidou e depois ficou com muito medo de me colocar no filme, porque eu fiquei famoso à partir do “Auto da Compadecida” e da minissérie “Hilda Furacão”. E ele ia fazer o filme todo recheado com atores desconhecidos do grande público. Então, nós tivemos um encontro onde ele disse: “- eu vou me arriscar colocando você. Eu adoro o seu trabalho e como faríamos para você existir como personagem no meio deles todos. Quase todos estreantes, quase todos moradores de comunidades, onde existe o tráfico de drogas no Rio”.

Ele tinha trazido o roteiro debaixo do braço para esse nosso encontro, aonde ele ia me convidar definitivamente para o filme. Eu perguntei como ele ia fazer com os atores todos. Ele disse: “- Eu vou fazer algumas oficinas, a Fátima Toledo vai trabalhar com quem tem menos experiência e eles não vão ter roteiro, nós vamos ensaiar a cada dia, a cada cena”. E eu disse então: “-não me entregue o roteiro, quero fazer exatamente como eles”, e assim foi feito o ‘Sandro Cenoura’. Eu participei de todos os workshops. Não trabalhei muito com a Fátima, porque ela tinha 180 personagens para cuidar, mas estive em alguns ensaios, participei dos laboratórios, dividia o caminhão camarim com eles na Cidade de Deus. Não tive nenhuma regalia, não tive o roteiro do filme, assim como todos eles. Eu ficava muito junto deles. Eu, Seu Jorge, a gente grudou neles. Seu Jorge já conhecia esse mundo, mas era preciso mais ainda né!


Então você vê que são personagens que marcam minha vida e marcam a vida de quem assistiu também. Eu fico feliz quando você diz que gosta muito deles. Sinto-me muito identificado com os dois, mas cada um foi acessado de uma maneira, de um procedimento. Agora no fundo, no fundo é o que eu te disse o meu método é a identificação total, até que o texto, a dramaturgia se torne na minha boca depoimento. Eu gosto de fazer o personagem em primeira pessoa, independente do sotaque, da sexualidade, da classe social, da religiosidade, da alegria, da tristeza que o personagem carrega.

Eu comecei falando do artesanato. Um artesão, um marceneiro que fosse fazer uma cadeira, teria que conhecer minimamente como se comporta cada tipo, cada espécie de árvore, que madeira é mais dura, ou macia para se trabalhar. Como utilizar as ferramentas, a maquinaria para cortar madeira, lixar madeira e até quem sabe colocada a madeira recebe que tipo de tinta. O ator também tem seus manuais, tem suas técnicas. Mas basicamente, o grande trabalho acontece no espírito. Por isso, é um pouco complexo falar sobre isso.


4) Algumas profissões rendem histórias interessantes, curiosas e às vezes engraçadas. E certamente, quem trabalha com cinema, tem suas pérolas. Lembra de alguma história legal que tenha acontecido  durante a execução de algum trabalho seu e que possa compartilhar conosco? Alguma história de bastidores por exemplo…

M.N.: Sobre histórias curiosas de sets, eu posso te contar mil histórias, eu tenho tantas, acho que cada filme tem várias, existem muitos momentos divertidos, inusitados, no cinema, no dia a dia de uma filmagem, que poderiam ser contadas. Também é difícil escolher um em especial. Eu tenho histórias engraçadas, divertidas, no Amarelo Manga do Cláudio Assis, no Auto da Compadecida do Guel Arraes, do Bem Amado também do Guel. Eu tenho histórias divertidíssimas e inusitadas em muitos lugares. Mas eu acho que a mais emocionante nos aconteceu no filme que eu dirigi: “A festa da menina morta”. O Paulo José é casado com a Kika Lopes, que era figurinista do filme, uma grande figurinista de cinema e de teatro do Brasil.

E ele foi a Barcelos onde nós filmamos no alto Rio Negro, nos visitar, e já estava com Parkinson. Não tinha um personagem para ele, mas quando ele chegou, ele disse: “eu adoraria fazer parte”. Ele ia ficar poucos dias, e eu tinha algumas cenas a serem filmadas ali nos dias em que ele estava, era no final do filme já. O Paulo inclusive estava na festa de encerramento das filmagens. Enfim, juntei todo o resto de energia que eu tinha como criador ali e inventei para ele um padre que tinha algumas cenas, pedi para ele escolher uma poesia que ele quisesse dizer durante o filme.


Ele fez parte da cena da fogueira final da oração final do Santinho, isso era mais fácil encaixá-lo. Mas tinha uma lavagem da casa do Santo em que eu pensei que ele poderia estar do lado de fora da casa, representando um padre católico de que alguma maneira quisesse participar da seita da Menina morta.

Ele então escolheu um poema muito bonito. Fizemos um plano sequência que terminava com ele e fizemos em um take. A gente sempre fazia dois takes, porque fizemos em película. A gente tava muito longe de tudo, era bom trocar o “chassi” e fazer um segundo take sempre para ter garantia de não ter um negativo riscado ou algo assim. Eis que na segunda tomada, na hora que chega no Paulo José, dá uma “rajada de vento”, um vendaval tão bonito, que fez com que a cena dele toda acontecesse no meio de uma ventania, de um tipo de ciclone com muitas folhas. A bata do padre que ele estava vestindo, ficou dançando ao vento, as árvores ao redor dele todas balançando, as bandeirinhas que estavam colocadas para o cenário da festa, todas chacoalhando ao vento. Foi um milagre. É a única cena de fala do Paulo José no filme, e ela acontece no meio de um grande vendaval, e essa história foi bonita.


5) Se pudesse, por um dia, ser um ator (ou atriz) do cinema clássico (de qualquer país) e através deste dia, ver pelos olhos dele (a), uma obra prima sendo realizada, quem seria e qual o filme? 
E claro…porquê?

M.N.: Vou puxar sardinha para o nosso lado aqui do Brasil. Eu acho o cinema brasileiro maravilhoso desde sempre, desde Mário Peixoto com o filme “Limite” até hoje em dia com os filmes dos mais jovens. Eu sou um grande admirador do cinema brasileiro. Seria injusto escolher alguém de fora do Brasil. Eu vou dizer que adoraria ter estado no Set de filmagem com câmera na mão e uma ideia na cabeça junto com Glauber Rocha, acho que teria sido muito lindo. Faço questão dessa pergunta, de responder homenageando um mestre aqui da gente. Mas poderia ser um filme do Mazzaropi, poderia ser um filme do Zé do Caixão, poderia ser tanta coisa. Eu tive muitas honras na vida, trabalhei com grandes cineastas brasileiros, com alguns, muitas vezes como Walter Salles, Guel Arraes, Cláudio Assis, Lírio Ferreira, Eliane Caffé. Não me faltaram alegrias.


6) Agora voltando à sua área de atuação. Qual trabalho realizado você ficou profundamente orgulhoso? 
E em contrapartida, o que você  mais se arrependeu  de fazer, ou caso não tenha se arrependido, teria apenas feito diferente?

M.N.: Dediquei-me de corpo e alma a cada personagem, das séries, das minisséries e das novelas que fiz tenho bastante orgulho do trabalho. É claro que a gente tem alguns arrependimentos processos que não foram tão bonitos. Alguns momentos em que você precisou de grana e teve que fazer uma ou outra coisa que não tinha tanta vontade, mas eu sempre tive a honra de ser chamado para trabalhos bonitos.

Eu não me arrependo então de nada. Arrependo-me quando não estive inteiro em algum trabalho, ou quando não pude aproveitar totalmente o personagem, aconteceu também. Tenho muito orgulho dos filmes pequenos, dos personagens pequenos, que são pouco percebidos pela grande mídia, mas que deixam um depoimento eterno sobre quem nós somos.


Eu acho que o ser humano tem essa coisa linda chamada vocação e que ela tem que ser atendida. A vocação é aquilo que você tem de melhor para dar, aquele teu talento que pode beneficiar o máximo de pessoas e você mesmo. E acho que existe um talento específico para o ator, esse descendente das religiões, esse pastor profano, esse Pai de Santo “Arquetipal” moderno; acredito realmente que o trabalho do teatro, da interpretação, da grande dramaturgia e os atores, serve para o ser humano avançar, fazer catarses, rir e chorar de si próprio e avançar.

É preciso uma vocação para a entrega do espírito, do corpo e da experiência humana para que o ator se faça completamente. É preciso estar muito atento também à vocação dos projetos dos quais você se envolve. Eu tenho orgulho da grande maioria das coisas que eu fiz. Tenho orgulho do período da minha formação, que foi muito rígida e profunda.

Tenho muito orgulho do teatro da Vertigem, ali nós nos desenvolvemos demais como artistas, todos. Sob a batuta do Antônio Araújo. Mas muitos criadores de cada espetáculo do “Paraíso perdido”, o “Livro de Jó”, do “Apocalipse”. Tenho muito orgulho da retomada do cinema brasileiro, da qual eu participei com tanta energia, tanto empenho, de ter estado na mão de tantos diretores interessados em tatear o Brasil profundo de novo.


A retomada foi um momento bonito de reconstrução do cinema brasileiro e do Brasil. A retomada e o período mais bonito da história política do Brasil coincidem, uma coisa interfere muito na outra. Também tenho muito orgulho das coisas que eu fiz na televisão. Eu bati o pé, eu fiz questão em estar nos projetos belos, vocacionados, com diretores que sabem a importância da televisão, mesmo as novelas mais competitivas tem lá seus personagens importantes, arquetipais, eu sempre pude tê-los.

Eu tenho, há cinco anos, feito teatro com muita volúpia. Eu tinha ficado afastado um tempo, por causa do cinema e a TV principalmente, mas há cinco anos, eu voltei para o teatro com um monólogo no qual eu falo os poemas de minha mãe Maria Cecília, que morreu quando eu era um bebê; chama-se “Processo do conscerto do desejo”. Há cinco anos eu faço essa peça pelo Brasil a fora, quero seguir fazendo, tenho convites para depois da pandemia. Tenho convite e desejo fazer fora do Brasil. Também tem a peça “Molière - uma comédia musical” que eu faço com Renato Borghi que tem um grande elenco de atores e músicos, dirigida pelo Diego Fortes, jovem diretor curitibano, um musical, antifascista que também está com sua turnê suspensa por causa da pandemia, mas eu quero voltar a fazer. Tenho novos projetos, tenho muitos desejos. Quero cada vez mais ao chamado da vocação e estar ao vivo com as pessoas. O teatro mais do que nunca ganhou para mim um patamar de lugar especial da convivência humana.


7) Para finalizar, deixe uma frase famosa do cinema que te represente.

M.N.: "- Cinema não é para entreter, é para  fazer sonhar”
Win Wenders

M.V.: Obrigado amigo, foi um grande prazer

 

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